O mito do povo trabalhador e machismo nas eleições do RS


Por Vanessa Gil, Paula Cervelin Grassi, Raquel Duarte, Cíntia Barenho*

O Brasil é um país formado por um histórico de imigrações. Primeiro a forçada, através da escravização de seres humanos vindos da África. Depois, por europeus que viam nesse país de dimensões continentais a possibilidade de uma vida longe da fome, da miséria e de todas as marcas da violência impostas pelo desemprego do século XIX e mais tarde por duas grandes guerras. Aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, para instalar os europeus que viriam substituir o trabalho escravo, os Kaingangs foram expulsos da região da Serra. Não foi um processo fácil para nenhum dos envolvidos. Ninguém atravessou o Atlântico porque gostava de papagaios. Atravessaram porque suas condições materiais assim exigiam.

Encontraram um país que se estruturou sobre a escravidão e o foi o último a aboli-la. Aqui, trabalho era coisa de negro, e, por consequência, de pobre. Só uma coisa era menos nobre do que trabalhar, ser negro/a. Negro/a e trabalhador/a, então, era o nível máximo de humilhação.

A vinda de europeus para o Brasil fazia parte de um processo abraçado pelo Estado afim de promover a colonização agrícola de regiões do sul do país. Deste modo, foram dadas oportunidades aos recém - chegados para que pudessem reconstruir suas vidas. A população nacional pobre, constituída na sua maioria por negros/as, ficaram de fora deste projeto de colonização.

Essa breve introdução sobre a sociedade brasileira se faz necessária para que possamos refletir sobre o peso dado ao trabalho na propaganda do candidato ao governo do Estado do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori. Boa parte da sua propaganda repete a frase "todo gringo é trabalhador". Logo, Sartori é trabalhador porque tem descendência europeia, ou gringa, como gosta de ressaltar. Sim, simples assim. Contudo, se existe um povo que é por natureza trabalhador, deve haver outro que, também por natureza, não é, certo? Caso contrário, se eu considerasse todos os povos trabalhadores, a afirmação de que todo o gringo é trabalhador não faria nenhum sentido.

Pois é, Sartori é de Caxias do Sul, cidade que vem recebendo imigrantes africanos há algum tempo. Qualquer busca no google é capaz de mostrar a xenofobia e o racismo do qual vem sendo vítimas esses/as imigrantes negros/as.Tão imigrantes quanto qualquer um/a da "colônia". Agressões físicas, verbais e até em pronunciamento oficial de vereadores. Afinal, Caxias é terra de gringo trabalhador. Mas Caxias é não formada apenas por gringos. Sim e os negros? Já perceberam a contradição?

Ai o problema de um candidato a governador assumir que ser trabalhador é característica do povo do qual descende. Primeiro não existe ser humano que viva sem trabalho. Disse trabalho, não emprego. Devemos muito aos imigrantes italianos e alemães. Mas não devemos menos aos negros e negras que construíram não só o nosso estado, mas o país inteiro.

E a qual trabalho o candidato se refere?

Quando nascemos, para que possamos sobreviver e crescer é necessário que uma grande quantidade de trabalho seja realizada. Alguém precisa nos manter alimentados, limpos, aquecidos, longe de perigos. E isso é muita coisa. Envolve limpar ambientes, cozinhar diversas vezes ao dia, todos os dias, lavar roupas e uma infinidade de, veja só, trabalho. Só há uma forma de sobreviver sem realizar esses trabalhos: contratar alguém para fazer isso no seu lugar, não só para você, mas para seus filhos e filhas, transformando esse trabalho em emprego. No Brasil, segundo dados do Dieese1 (2011), as pessoas empregadas no trabalho doméstico atingem a marca 6,1 milhões, sendo mulheres 92,6% e 61% negras. Ainda entre as negras acima de 65 anos, 53,8 por cento não possuem instrução e 44,2 por cento possuem ensino fundamental incompleto.

Assistindo um pouco mais o programa eleitoral de 13/10 entendemos porque Sartori tem sua compreensão de trabalho tão limitada. Ao fazer o que a imensa maioria dos candidatos faz, aparece numa conversa com os integrantes da família, trazendo para o debate público, seu espaço privado, como se ter uma família tradicional, heterossexual e com um casal de filhos habilitassem alguém para a vida pública. Reforços da estrutura da família patriarcal. Bem, nessa entrevista o candidato revela que quando sua esposa foi eleita deputada federal, precisou da ajuda da filha para vestir-se. Parece pouco, mas isso diz muito. Como pode um homem que terá de lidar com políticas públicas voltadas para mulheres ter orgulho de não saber escolher as próprias roupas? Isso demostra que, se não cuida do ato mais pessoal, vestir-se, o debate do compartilhamento do trabalho doméstico está longe demais do candidato. Ele ignora que mulheres gastam 26,6 horas semanais com trabalho doméstico. O tempo gasto pelos homens é menos da metade, segundo o IPEA2. Que essa sobrecarga nos adoece, nos estressa, nos tira tempo de lazer e estudo.

Provavelmente ignore que é dever do Estado prover políticas e equipamentos públicos que auxiliem no compartilhamento do trabalho doméstico. Como será que isso é pensado em seu projeto de governo?

Dessa forma, não sei exatamente o que Sartori compreende por trabalho, mas uma boa sugestão seria passar mais tempo conhecendo a realidade daquelas e daqueles para quem pretende governar, em especial, as mulheres e mais ainda, a maioria da população não "gringa" do RS.

Não existe povo que não gosta de trabalhar, candidato, existe povo sem emprego. Trabalho, para pobre, não falta. O que falta é emprego, remuneração digna e respeito às leis trabalhistas.



* Texto coletivo de Vanessa Gil, socióloga, mestranda em Educação (UFRGS) e militante feminista; Paula Cervelin Grassi, formada em História pela UCS, artesã e militante feminista; Raquel Duarte, advogada, mestranda em Direito Ambiental (UCS) e militante feminista; Cíntia Barenho, Mestre em Educação Ambiental, Bióloga e militante feminista.

1 Disponível em: http://www.dieese.org.br/estudosetorial/2013/estPesq68empregoDomestico.pdf. Acesso em 13/10/2014

2Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=14321. Acesso em 14/10/2014


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